VÁ TOMAR BANHO !
Durante os primeiros três séculos de existência nacional, a higiene e o saneamento eram bem precários na sociedade colonial, quando não desconhecidos totalmente, mesmo nas cidades capitais.

Profº Milton exibe o penico da fazenda Veneza Conservatória.

Inexistia todo e qualquer abastecimento de água nas cidades, e quando os havia, o máximo que acontecia era a Municipalidade construir chafarizes públicos onde os escravos apanhavam a preciosa linfa.

O abastecimento doméstico era desconhecido, salvo, rara exceção, em alguns conventos, mosteiros ou prédios públicos.

A água, sendo rara, era usada apenas para beber e cozinhar.

Até fins do século XVIII, o brasileiro tomava, em média, de três a quatro banhos de imersão por ano, quando então trocava de roupas.

Esta prática não pode ser impugnada aos nossos colonizadores, sendo comum em toda a Europa Ocidental.

Alguns pensadores religiosos condenavam abertamente o banho, considerando-o um culto ao corpo, quando se devia valorizar a pureza da alma.

Os monarcas deviam dar o exemplo: Luís XIV tomou cerca de cinco banhos em seus setenta e sete anos de vida. Seu bisneto, Luís XV, só o tomou às vésperas de morrer. Conta-se que Luís XVI foi para a guilhotina sem experimentar o banho e Napoleão enviava cartas à Josefina, pedindo que ela jamais se banhasse, pois gostava de seu cheiro.

De tempos em tempos uma toalha úmida era passada no corpo, para retirar a pele morta e resquícios de maquiagem.

No resto, a falta de banho era disfarçada com perfumes e maquiagem.

Se corporalmente a higiene era desconhecida, que dizer das casas de então? Sem a prática do banho regular, o máximo que encontramos de tecnologia de higiene era uma casa no fundo do quintal, onde havia uma latrina primitiva que dava para uma fossa. Em algumas construções rurais, a latrina desembocava num regato, ou, como era comum nas fazendas de café, no chiqueiro! De tempos em tempos um escravo esvaziava a fossa, colocando todo o conteúdo num grande vaso cerâmico, carregando-o depois à cabeça para arremessar o conteúdo numa praia ou terreno baldio.

O horror que tal figura provocava aos transeuntes valeu-lhes o apelido de “tigres”.

Não raras vezes o conteúdo vazava, deixando o pobre escravo “enfezado”, com manchas na pele, daí o apelido grotesco.


A urina era feita em urinóis, alguns até de porcelana e há casos de uns raros serem feitos em ouro, como os do Barão de Catas Altas. O conteúdo era simplesmente arremessado pela janela nas primeiras horas do dia, causando incidentes aos transeuntes. Um desses arremessos acertou, em 1776, o Vice-Rei Marquês de Lavradio, que, furioso, mandou lavrar uma lei instituindo prática já existente em Portugal: “todo o sujeito que for arremessar águas servidas pela janela, deverá bradar antes ÁGUA VAI”. Houve resistências à aplicação da lei ditadas pela já prolongada prática colonial. Pessoas jogavam e bradavam ao mesmo tempo, ou jogavam primeiro e bradavam depois. Segundo Luís Edmundo, alguns bradavam corretamente e arremessavam sim coisas mais sólidas…

As casas eram escuras e úmidas. A ventilação do ar era pouca e até indesejada, considerada por muitos como doentia.
Nas casas baixas, a taipa das paredes absorvia a água do solo por capilaridade, provocando manchas e goteiras por todas as paredes.

Em terrenos alagadiços, a situação era pior, umidificando excessivamente o ar interior e causando nos moradores todo o tipo de doenças e alergias respiratórias.

Sob o piso, formava-se toda uma comunidade de insetos repugnantes que, de noite, chegavam a subir pelos móveis e roupas.

Uma viajante alemã do final do século XIX, – Ina Von Binzer -, conta que afastou sua cama das paredes, colocando os quatro pés da mesma dentro de panelas com água, tudo para evitar a invasão de baratas – sem sucesso.
Baratas, barbeiros, formigas, cupins moscas, mosquitos e ácaros eram comuns nos quartos, haja vista a inexistência de qualquer tipo de inseticida, limitando o combate a essas pragas com a caiação das paredes e a colocação de pimenta do reino nos ninhos de cupins e formigas. Lagartixas, morcegos e ratos completavam esse porco ecossistema, onde às vezes entravam também os animais domésticos, eles próprios guardados dentro da casa, o que não ajudava nada a higiene doméstica. Parece que a sociedade colonial conviveu relativamente bem com esses animais. A própria viajante alemã informa-nos que, depois de algum tempo se acostumou a tudo.

Nas residências, o quintal era um depósito de lixo e, nas casas de mais de um pavimento, até a poeira era varrida para orifícios no piso do sobrado, caindo sobre o pavimento térreo, onde ficavam os animais, escravos e a cozinha. Esta última era tão suja e exalava tão mau cheiro que em algumas residências rurais era a área de serviço separada da casa. Em algumas fazendas, já no século XIX, a cozinha era cercada por jardins com plantas oloríferas e há casos de incensórios colocados nas portas, tudo para espantar a fedentina dos alimentos guardados sem refrigeração. Os cozinheiros e copeiros eram escravos que desconheciam as mais básicas regras de higiene.

Os senhores brancos jamais chegavam perto de tal ambiente. Pudera! O que os olhos não vêem o coração não sente…

Nas vilas e cidades, inexistiu qualquer tipo de esgotos, coletores de águas pluviais e coleta regular de lixo, ficando tudo a cargo da natureza ou de alguns moradores mais conscientes. O lixo era jogado em qualquer terreno baldio ou praia.
No mais das vezes era jogado na própria rua, onde, no centro das vias calçadas (quando existiam), era o lugar da sarjeta, o caimento natural do logradouro público, normalmente ao centro da via, e que recebia de tudo, dos restos de alimento doméstico a animais mortos. Nada era recolhido.

Os porcos, cães e urubus foram os grandes lixeiros coloniais. No mais, o serviço de limpeza era complementado pelas chuvas ou, como no caso das cidades à beira mar, pelas marés, que a tudo levava para os rios, contaminando a já rara água de beber.

Somente em fins do século XVIII que a Câmara do Rio de Janeiro votou medidas ordenando a varredura, pelos próprios moradores, das ruas defronte suas casas. A Câmara também determinava os locais para descarregar o lixo, o que nem sempre era levado muito a sério pelos moradores. Valia, neste caso, – como afirmava Luís Edmundo – a lei do menor esforço. As ruas não possuíam qualquer arborização e eram pouco ventiladas.

Não era à toa que a média de vida era muito baixa. As mulheres aos trinta anos já estavam idosas e, aos quarenta, repousavam debaixo da terra. Os homens, em média, viviam um pouco mais, atingindo os quarenta e cinco a cinqüenta anos. Quanto aos escravos, a vida média de um negro chegado da África era de sete anos.

Alguns membros da elite que podiam pagar por médicos viviam um pouco mais, mas não muito. Daí as mulheres casarem cedo, com idade entre doze e dezoito anos. Os homens se casavam com trinta anos.

As mulheres tinham filho até morrerem e os partos eram realizados por curiosos na própria residência familiar, sem qualquer regra de higiene.

Os enterros eram realizados nas igrejas, sob o piso de madeira ou pedra das naves. Em caso de epidemia, os cadáveres se acumulavam nos sepulcros, causando muito mau cheiro. Testemunhas relatam que os cadáveres ao incharem faziam o piso de madeira das igrejas levantarem, forçando um escravo a esmagar os corpos em decomposição com uma marreta. O fedor era tão insuportável que uma pessoa cega saberia a situação das igrejas pelo mau cheiro.

As cerimônias religiosas eram realizadas sob nuvens de incenso, que ajudava a disfarçar o mau odor. Somente em 1850 foram proibidos os enterramentos em igrejas, surgindo daí os primeiros cemitérios extra-muros.

Os escravos, por sua vez, eram enterrados em qualquer lugar, quando não apenas jogados os corpos no mato ou no mar. Desde o século XVII existiram cemitérios de escravos, mas a maioria preferia, assim como no caso do lixo, a lei do menor esforço, enterrando-os onde existia um terreno livre. Mesmo nos cemitérios de escravos, o serviço funerário era tão mal feito e as covas tão rasas que o fedor era sentido a muita distância.

Não eram respeitados os limites de sete palmos para uma cova, contentando-se os coveiros de apenas fazer uma cova rasa, deitando fina camada de terra e areia por cima do cadáver, no geral enterrado seminu. O lixo e os cadáveres em decomposição contaminavam as nascentes e a água encanada dos chafarizes, criando um círculo vicioso mortal. Somente em 1813 foi expedido um aviso pelo Príncipe Regente proibindo depósito de lixo e outras imundícies perto de nascentes. Dois anos depois, o decreto foi ampliado, exigindo que um engenheiro da Câmara determinasse uma área segura em volta da nascente onde seria proibida a extração de madeiras e deposição de lixo, mas isso não valeu para muito distante da Côrte.

Somente no século XIX foram proibidos chiqueiros na área urbana, mas isso também nunca foi muito respeitado, obrigando a reedição dessa lei até 1890.
A crendice da época era arraigada e também não ajudava muito. Os terrenos voltados para o mar eram desvalorizados pelo fato da população imaginar que o “ar salitrado” era prejudicial à saúde. A praia, bem como os rios, como foi descrito atrás, eram depósitos de lixo e não áreas de lazer. Tinha-se muito medo dos “miasmas”, expressão que pode bem ser traduzida como “fedor externo”. Assim sendo, portas e janelas eram trancadas para impedir a entrada de mau cheiro vindo de fora, o que aumentava a umidade interna e o ar estagnado dentro das casas.

O panorama da higiene pública no Brasil somente começou a mudar com a chegada da Côrte em 1808. D. João criou no mesmo ano a Intendência Geral da Polícia, que tinha, dentre muitas funções a fiscalização da limpeza urbana. Em 1809 foram proibidos os muxarabis e balcões em madeira, sendo substituídos por janelas de vidro, que permitiam a entrada da luz solar.

Tempos depois ele mesmo criava uma academia de medicina e cirurgia no Rio de Janeiro. Enfim, a abertura dos portos brasileiros ao mundo possibilitou não só a entrada de produtos ingleses, mas igualmente a penetração de novas idéias sobre higiene; e, se D. João VI apenas tomou um banho em sua vida, seu filho, D. Pedro I tomava-os com certa regularidade.

Enfim, foi um grande percurso na história desde que mandar alguém tomar banho fosse uma ofensa grave até que a mesma ordem se convertesse num sábio conselho de saúde.






Fonte:
Prof. Milton de Mendonça Teixeira
• Historiador